O setentrião do actual do território angolano teve contactos, um pouco, antes do fim do século XV, com o Portugal, expansionista e mercantilista.
Essas relações tomaram a forma de sãos procedimentos diplomáticos, de trocas comerciais, de tentativas de cooperação técnica e de acordos religiosos, mas igualmente, e muito cedo, — visão mercantilista obriga! — a irreversível e sólida articulação das formações sociais africanas ao trafico negreiro atlântico e a ocupações de territórios.
E, uma das conquistas, decidida em 1571, que marcara uma ruptura decisiva da evolução da região ocidental da África central, foi a fundação, a espada, a partir de 1575, nas terras do Ndongo, e sob a iniciativa do ambicioso, astuto e jesuisante Paulo Dias de Novais, da estratégica cidade de Loanda.
Aproveitando um conjunto de circunstâncias de natureza militar e política, favoráveis, o nobre proto — capitalista, ordenou, a partir de 1583, a construção, como guarnição avançada, garantia de segurança para a preciosa nova citta, e capaz de conter os ataques vindos do hinterland, de servir de espaço de recuo, de centro de futuras obtenções territoriais e de protecção de caravanas de escravos, o forte de Massangano.
A escolha geográfica do sítio, ao confluente do Lukala e do Kwanza, que foi judiciosa, revelar-se-á, portanto, essencial na evolução da Colónia de Angola, que se tornara uma mono-exportadora de madeira de ébano, depois a muita amarga desilusão mineira de Cambambe.
LINHAS ESCLAVAGISTAS
A importância de Massangano, importante atravessamento fluvial, confirmara o facto de que as campanhas de captura e de encaminhamento de escravos seguiam, logicamente, as rotas de expansão militar.
Mas, essas acções conduzidas pelos sertanejos em direcção ao litoral serão perturbadas pela inoportuna ocupação de Loanda pelos Holandeses, de 1641 a 1648.
O restante do exército português, destroçado, se retirou, naturalmente, ai, em 1643, após uma penosa e improfícua deambulação de dois anos ao longo do Bengo, no redentor quartel dos dois rios.
A não-ocupação, in extremis, em 1648, do forte pelas tropas holandesas e as da rancorosa Rainha Nzinga, na sequencia da incompreensível capitulação dos Deutsch em Sankt Paulus van Loanda, confirmara a importância de Massangano, como epicentro na escravização e o encaminhamento ate as "Portas do Mar" dos ngolas, mundongos, matambas e casanjes.
Esses etnónimos de aferrolhados correspondiam perfeitamente a configuração da colónia portuguesa, cujos limites, no leste, paravam na Matamba, da implacável Nzinga Nzinga e no Kasanje, dos temíveis Imbangalas, com a sua bem abastecida Feira, na realidade o seu grande mercado de escravos.
As linhas de provimento da moeda humana, ia do médio–Kwango a embocadura do Kwanza, no verdadeiro traçado de escravização, o famoso duplo K, foram, assim, bem desenvolvidas.
TRAFICANCIAS
O forte desencanto mineiro português — auri sacra fames! — será a altura do extraordinário ardor engajado na exploração do potencial deste Jazigo humano.
Os mercantilistas descobriram que, os minerais tão procurados eram pretos, o ouro era ngola, a prata, mundungo, o cobre, matamba e o ferro, casanje.
Assim, a sua exportação se fará por centenas de milhares em direcção ao Golfe de Guine, a Península ibérica, as Américas e as Caraíbas.
A exploração desses filões humanos será garantida — facto absolutamente revelador — pela uma organização estritamente militar deste sumarento território.
Com efeito, a Colónia de Angola era dividida em presídios, colocadas sob a autoridade absoluta de um Comandante militar.
Foi, justamente, o caso de Massangano, terceira burgo da possessão portuguesa, depois de Luanda e Benguela; aglomeração fortificada, verdadeira cidade, que tinha o seu próprio Conselho Municipal.
E, precisamente, um dos seus Comandantes, que tinha sob a sua administração, Ambaca e Muxima, Pedro Matoso de Andrade, que se engajou no muito lucrativo trafico de mwangoles, que construirá, no fim do século XVIII, a residência — baptistério do Morro da Cruz, que foi erguida, em Museu Nacional da Escravatura., instituição situada a uma trintena de kilometros de Luanda, um pouco antes, da exutoria Barra do Kwanza.
Fazendo assim, este oficial superior não fazia senão seguir as traficâncias esclavagistas ambientes mandadas pelos dignitários e altos funcionários do longínquo território do Império portugues.
METAMORFOSA
E esta mono — cultura de tipo esclavagista, fundamento económico e social desta estranha colónia, que explicara o dramático sob — desenvolvimento e o seu triste combate tendendo a adiar a abolição da travessia transatlântica dos cativos embarcados na Cote d’ Angole.
Isso explica, igualmente, a previsível metamorfose neo — esclavagista deste sistema que se traduzira, num surpreendente cinismo jurídico, pelo adiamento, a vinte anos!, da alforria dos escravos, a instituição do trabalho forcado (?), a promulgação do estatuto de serviçal e contratado, a imposição do carreto (carregamento obrigatório) e da subsequente cambolacacao (formação de caravanas), a decisão de compensar o deficit esclavagista com a agravação da fiscalidade negra consubstanciada no dizimo e no imposto da cubata, e a continuação da exportação massiva, ate plenos meados do século XX, dos ngolas, mundongos, matambas e casanjes assim que de outros mwangoles, doravante reunidos na Grande Colónia de Angola, bem alargada, após a muita disputada partilha da capital alemã, em 1885.
Esses serão, interminavelmente, encaminhados, sem reais esperanças de regresso, nos húmidos "obos" e "rocas" de São Tome e Príncipe, que as tradições orais angolanas fixaram, como, wele ku tonga.
O objectivo deste conjunto de disposições, inaceitáveis, visava a compensar, a pouco gasto, o atraso económico que acumulou, durante três séculos, a terrível colónia mono — esclavagista.
Os neo — constrangidos serão, portanto, colocados ao trabalho forcado na construção de infra-estruturas (estradas e caminhos de ferro) assim que no desenvolvimento, prioritário, de culturas comerciais, de carácter industrial, tais como o volátil algodão e o varonil café. Com efeito, essas, ofereciam mais interesse para as empresas e os colonos, bem venais.
NOITE DE CRISTAL
Opção anacrónica que será fatal a jóia lusitana com a inesperada revolta dos camponeses — algodoeiros, tornados, da fértil Baixa de Cassanje, bem encostados, ao contagioso Congo do radical e assustador Lumumba.
Com efeito, esses Danos da terra bem rurais, iniciarão, na noite de 4 de Janeiro de 1961, no decurso de uma Noite Branca, uma corajosa sublevação, que marcara o epílogo da potência colonial e ditatorial salazarista e a predominância da poderosa luso–belga Cotonang.
Esta será apoiada, oportunamente, exactamente, um mês depois, pela absolutamente dupla heróica insurreição urbana de 4 de Fevereiro, em plena cidade de Luanda, e, pela outra violente sedição, que detonara nas zonas setentrionais cafeicolas do pais.
Seguir-se-a, no Kwango, — como era de esperar — uma terrível repressão terrestre e aérea.
Três meses de campanhas militares bem preparadas, no Vale pelo cruéis caçadores especiais e a planificação, bem apropriada, de bombardeamentos ao napalm — produto que foi utilizado, pela primeira vez, em Angola, aí, provocarão, segundo diversas fontes, credíveis, mais de 20 000 mortos.
Segundo vários observadores independentes, a selvagem operação militar portuguesa, uma autêntica "açougue", organizada contra os independentistas e mal — armadas agricultores do nordeste do inseparável Estado de Angola foi o maior massacre perpetrado no Império multi–continental.
A volátil região algodoeira de Low Cassanje, a primeira a enfrentar a mortal agressividade dos neo–escravocratas, tirou, definitivamente, a apreensão dos angolanos sobre as graves consequências da repressão colonial.
Ontem e hoje, esta brava insurreição e considerada como um dos mais elevados actos, iniciais, que reforçou, irreversivelmente, o engajamento nacionalista dos angolanos.
E, a justo título, que o Governo da terra do valente Mandume, institui, a este respeito, o 4 de Janeiro, como Dia dos Mártires da Repressão Colonial afim prestar uma homenagem merecida aos milhares de heróis massacrados na Baixa pela causa da libertação da pátria.
Alem da construção, projectada, de um verdadeiro Museu Nacional da Escravatura, o Governo da Republica devera principiar, o mais rapidamente, possível, estudos para a erecção de um Museu da Repressão Colonial e a edificação sobre os sítios das unidades de tratamento da mal afamada Companhia Geral dos Algodões de Angola, na martirizada Zona Branca da nossa ensanguentada mas generosa Província de Malanje, um agrupado memorial destinado a glorificar os insurrectos da noite de 4 de Janeiro de 1961, esta noite de cristal, libertadora.
Simao SOUINDOULA
Membro do Comite Internacional do
Projecto da UNESCO "A Rota do Escravo"
C.P. 2313
Luanda
(Angola)
Pagina enviada por Simao Souindoula
(5 de janeiro 2009)