É a apreciação que pudemos fazer depois da visita atenta a admirável exposição que foi montada, recentemente, na Galeria Celamar, na ilha-tesouro, na sequência da realização do último atelier deste programa colectivo de incubação plástica.
Inaugurada pela própria nova Ministra angolana da Família e Promoção da Mulher, Ginoveva Lino, na presença de várias personalidades tais como do, coincidentemente, coopeartista, Francisco Van-Dúnem, Director do Instituto Nacional de Formação Artística, que representou, pela ocasião, a discreta direcção do Ministério da Cultura, em inevitável mudança, do Manuel Sebastião, o consciencioso Director dos Assuntos Culturais da impetuosa Província de Luanda e de Shimon Misrachi Pipchow, Director da generosa Fundação Arte e Cultura, principal instituição mecena desta iniciativa.
Tomaram, igualmente, parte na agradável cerimónia de abertura, responsáveis das empresas apoiantes a grupal oficina da rua Mortala Mohamed, tais como a petrolífera francesa Total, a sensível e nacionalista Banco de Fomento de Angola, a revivida Aliança Francesa e o conjunto das órgãos de comunicação públicos do país.
Notou-se, também, a reconfortante presença de representantes do Corpo Diplomático, acreditados nas terras do omnipresente "Pensador", que seguiram, com muita satisfação, a animação multidimensional, ao mesmo tempo, instrutiva e relaxante, com vozes e grupos habituados da casa tais como a promitente poetiza Zuline Bana, a cantora Tunicha Miranda, com o seu eficaz "play back", os conjuntos de teatro, de raiz, Uachala Uachala e Mona Muazanza e as renovadoras jovens percussionistas afectas a galeria.
Registou-se, aí, igualmente, a participação da Solange Escosteguy Cardoso, Embaixatriz do "clonado" Brasil nas terras da "Regina" Nzinga, artista plástica de talento, que dirigiu, durante o "Quinto Reencontro" ilhéu, sessões sobre o tratamento e a utilização do "papier mache".
Participaram no estúdio da "Ilha" artistas, profissionais e amadores, originários de Austrália, Brasil, Cuba e Venezuela e, naturalmente, criadores nacionais, residentes em Luanda, mas igualmente, no interior do pais, nomeadamente dos Planaltos centrais.
O circuito expositivo ostentou cerca de uma centena de obras decorrentes de vários domínios plásticos tais como a clássica pintura o óleo, a atraente aplicação acrílica, a reformadora utilização de técnicas mistas, a relevante tecelagem, a milenária escultura sobre madeira ou pedra, a proveitosa cerâmica e a sensível fotografia.
As temáticas fixadas pelos artistas, em estilos, muitas das vezes, abstracto, impressionista ou figurativo, articularam-se em três eixos principais, a saber, as inevitáveis tradições, a incontornável bem-amada mulher e as irrecusáveis dificuldades sociais.
Crenças hidrogónicas
Notou-se, no primeiro registo temático, as antiquíssimas tradições pictográficas e iconográficas, as crenças rituais assim que cosmogónicas e hidrogonicas bantu, hoje, largamente maioritárias, no pais, as representa-ções antropomórficas, a expressão musical e coreográfica tradicional e os jogos infantis.
Registou-se, no segundo capítulo, a emotiva sublimação da fantasiadora e colante estética da mulher e do amor.
Enfim, a ultima grande tendência a assinalar foi a relativa a vertiginosa contemporaneidade com o ambiente sócio-psico-terapêutico dos mercados com a presença da venerável "Tia" quitandeira, a extraordinária coragem dos mutilados de guerra para a sua alfabetização e os irregulares e muito inconfortáveis musseques de Luanda, cujo início de desaparecimento já foi, felizmente, anunciado.
De salientar, igualmente, o realce da expressão da magnifica fauna e os esforços actuais de reconstrução nacional, absolutamente, espectaculares da terra do "coração das liberdades" e a representação do continente africano ainda acorrentado e a exaltação da convicção patriótica.
O campo das tradições foi explorado, no domínio da pintura a óleo, por vários artistas de alto nível a exemplo do excelente Boaventura Nzangela Simão, numa admirável composição inserindo perfis de máscaras cerimoniais e símbolos clanicos; a imensa revelação da rua MM, Francisco Makunfundu Ndongala, com as suas obras muito apuradas, na linha das melhores obras que são, hoje, produzidas em África, o delicado impressionista Vargas Mateus, especialista das multidões, o surpreendente Tiupa Fonseca, autor de telas originais multi-facetadas e o Nsimba Diongo Domingos, com as suas harmoniosas reconstituições de inspiração hidrogónica.
Este mundo, profundo das aguas, que sempre fascinou, não deixou insensível o crente Dos Santos, este Alfredo Paulo, que plantou, bem enigmaticamente, uma mesinha em pleno oceano Atlântico.
Curioso paralelismo, o pintor cubano Iván González Delgado, revelou estar bem albergado pelas mesmas lendas que atravessaram as vagas do Atlântico nos porões das naus negreiras.
Essas crenças e outras estão, cada vez mais, indecifráveis com obras de tais como as da excelente Madalena Coelho, a experiente "Le", que propôs verdadeiras instalações-aplicações pintadas.
Citar-se-a na sequência desta mão hábil, na mesma vénia, Dom Sebas Cassule, Kingebeni Kilaka, Nelson Ferraz, Silvio Erineu, Jeovany e Alberto Wilson Sovili, o segundo pintor proveniente da cidade de Huambo.
Notou-se a autoridade do veterano Avelino Kenga que insistiu na valorização de símbolos de mascaras, na dinâmica da redenção do infinito património etnográfico nacional; o quadro bastante referencial de Sérgio Moises Massa, que fixou um tocador de arco musical; o Sérgio Adão que se destacou com duas obras bem angolanas, nos seus tratamentos picturais e nas suas molduras; o trio angolano-brasileiro composto de Virgínia Romão, Boaventura Nzangela e Andrea Barth que evocou, num agregado, finalmente, surrealista, as persistentes crenças hidrogonicas — a ilha das sereias e os pincéis das duas "kianda" incitando fatalmente a isso!
Pictográfico
De relevar a contribuição de Van, tornado, definitivamente, pictográfico, recipiendário, para 2008, do Premio Nacional da Cultura, que transpôs a importância da família na preservação das tradições e o radiante arranjo pictural do talentoso Massala Tembo, "O Leão", simbolizando uma máscara solar. As indeclináveis, sedutoras, "mwana mpwo", vindas do fabuloso Oriente angolano, retornaram, com a composição do jovem Gika Biangano.
O simpático Pedro Hospital, líder dos artistas plásticos na antiga "Nova Lisboa", na sua inicial pintura, tentou afigurar tamborzinhos da terra.
As relações entre a pesada herança cultural e a modernidade foram realçadas numa obra, duetista, realizada, no decurso do work shop, pelo inevitável melómano — plástico Sozinho Lopes e o seu colega Diavita.
Humilde continuadora da angolanidade nas artes plásticas do pais, nos traços do seu mentor, o elegante e saudoso Viteix, e abertamente colectivista, Marcela Costa, exibiu, com a participação da sua "irmã" Teresa Rafael, uma extraordinária compostura tecida na qual as aplicações fazem sair nitidamente mensagens ligadas a necessidade, além das consoladoras percentagens arrítmicas, da protecção do género.
A inspiração geométrica, que foi registada na "Quinta Incubação", de tendência forcamente antropocêntrica ou cosmogónica, foi também a escolha do sempre insondável Mayingui, o vanguardista Sabby, as de Baltazar Batalha e do outro Santos, este Zeca.
Destacou-se, nos domínios da escultura e da cerâmica, a montagem multi-antropomorfa de Dito Pacheco e as extraordinárias moldagens, verticais e horizontais do prodigioso Makiadi Mawanda.
Constatou-se, com grande surpresa uma obra de cerâmica do espectacular escultor sobre madeira, o labiríntico João Mabuaka Mayembe. E um bom sinal de polivalência técnica!
As mulheres foram, naturalmente, objectos de todas as atenções.
Os seus distintos rostos, nos mercados, foram restituídos pelo impressionista João Massala Tembo, o Luís Mateus Yassoma, com a digna "Tia Quitandeira", o Paulo Bemvindo que elogia mulheres que não param, Prudência Margareth José que realce o trabalho como critério de feminilidade na mesma óptica que o virtuoso Domingos Nsimba Diongo, que defende "A leitura para todos", e sobretudo para o género desfavorecido. Os jovens pintores Alves Manuel e Tchinji compuseram na mesma linha inspiradora.
Cunho civilizacional
Quanto ao Nsaniezi Samuel Zakani, ele elogia a vital maternidade à semelhança de Gelson Gomes que inscreve o ardente de-sejo de maternidade das mulheres angolanas.
As cativantes formas femininas foram, evidentemente, postas em relevo pelo generoso e obstinado pintor Ngiandu Kapela e os seus confrades Sérgio Massa e Mário Branco Lima assim que pelo generoso escultor, o duplamente bem nomeado, Garcia Ndongala Kiala.
Bem libertadas, as próprias pintoras sublinharam a forca da estética feminina com a corajosa bolivariana Niesa Beatriz Guerra, a radical australiana Stephanie Sheppard e a conquistadora angolana Saco Dala.
A adversa contemporaneidade retém também a meditação dos coopeartistas.
A omnipresente brasileira Andrea Barth, abertamente alter-mundialista, bem magnetizada pela semelhança visual e geométrica das favelas cariocas com os musseques de Nxi a Loanda, desatou a sua emoção em coincidência com o pintor naif angolano, meio "brasileirado", o bem nomeado Gelson Gomes que optou pela retratação, vista da contra praia, da famosa baia de Luanda, em regeneração.
Os reforços de renovação da cidade capital mas igualmente da reconstrução e construção do pais inteiro, que estão arduamente em curso, foram fixados pelo jovem pintor Mateus Quirimba, espectacular dinâmica de vitória e renascença da pátria do Rei Mandume que foi simbolizada num vigoroso punho, selado numa quase viva escultura de Baltazar Batalha.
O jovem fotógrafo Constâncio de Carva-lho realçou bem esta evolução, rápida, de Angola, justapondo imagens de um edifício destruído e o recente e altaneiro "building" da Sonangol.
Quanto o pintor Panzo aprontou uma das representações de carácter social a mais pungente do estúdio da ilha, do frontispício da martirizada Angola, com a demonstração da coragem de um compatriota, vítima de um cobarde mina anti-pessoal, engajado a alfabetizar-se.
Este esforço, bem comovente, simboliza o do próprio país.
Conclusão
A exposição da ilha dos "nzimbu" permitiu apreciar uma interessante amostra da criatividade plástica em Angola.
E, as observações feitas na sequência deste certame autoriza afirmar, em substância, que há uma nítida estabilização das técnicas expressivas dos artistas plásticos angolanos e uma exploração mais perspicaz dos temas a cravar.
São essas duas realidades que assentam a cunho civilizacional da arte angolana contemporânea, conjunto de características que garantira as artes visuais do nosso pais de não desaparecer, corpo e alma, no implacável "melting pot" universal.
Simao SOUINDOULA
Membro do Comite Internacional do
Projecto da UNESCO "A Rota do Escravo"
C.P. 2313
Luanda
(Angola)
Pagina enviada por Simao Souindoula
(22 de janeiro 2009)